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Prémio de Doutoramento 2022 | Gonçalo Curveira Santos, 3º Classificado



Gonçalo Curveira Santos, investigador no cE3c (Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais) da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, foi o terceiro classificado do PDE 2022 com o seguinte trabalho: “Respostas da comunidade de carnívoros a modelos de conservação e gestão na África do Sul”. Aqui este investigador explorou a resposta da comunidade de carnívoros Sul Africanos a modelos alternativos de conservação e gestão, em função das interacções entre grupos.


Para isso, usou uma combinação de abordagens quasi-experimentais, baseada na heterogeneidade espacial dos modelos de gestão de fauna, e métodos estatísticos de inferência multi-espécie, para abordar as estratégias de conservação de carnívoros e desenvolvimento de planos de gestão de predadores na região. Ao longo deste trabalho verificou a importância de áreas de proteção formal a longo prazo, para a comunidade de carnívoros e os riscos que se cometem em praticar negócios lucrativos de exploração de vida selvagem como estratégia de conservação. Esta investigação sugere que os benefícios de uma abordagem descentralizada para a conservação da biodiversidade na África do Sul dependem de trajectórias, ainda desconhecidas, de recuperação de espécies e para o crescente apelo de uma visão ecológica holística para a conservação e gestão da vida selvagem.


À conversa com Gonçalo Curveira Santos a SPECO tentou perceber as motivações, as alegrias, os desafios e novas oportunidades deste investigador. Deixou também algumas mensagens quer para a SPECO quer para os outros jovens que estejam agora a iniciar a sua carreira de investigação.



1 | Quais as bases do desenvolvimento do seu trabalho?

O meu projecto de doutoramento surgiu de uma interessante intersecção de aspetos teóricos e aplicados em ecologia. Nomeadamente a crescente disparidade entre paradigmas ao nível da comunidade na ecologia contemporânea e uma perspectiva clássica da conservação centrada em espécies e paisagens alvo. Este contraste é bem exemplificado no contexto de conservação sul Africano, com as comunidades de mamíferos carnívoros a desempenhar um papel central neste debate.


A África do Sul é um país pioneiro na implementação de abordagens descentralizadas para a conservação. A atribuição de direitos privados sobre a vida selvagem transformou a paisagem de conservação local, com a indústria privada de vida selvagem (ecoturismo e caça) a desempenhar um papel cada vez mais importante no aumento de áreas geridas com intuitos conservacionistas. Este modelo é considerado um sucesso económico e político, mas os benefícios para as espécies de carnívoros terrestres são menos claros. Sobre os grandes e mais carismáticos predadores (como leões) incide uma gestão direccionada e intensa, seja para promover valores ecoturísticos ou para melhor gerir um elevado conflito com o Homem em fazendas de caça. Por contraste, a maior fracção da elevada diversidade taxonómica e ecológica de carnívoros locais permanece negligenciada em termos de investigação e desconectada das medidas de gestão, pese embora uma vasta literatura em ecologia sobre complexos efeitos em cascata resultantes de alterações nas populações de carnívoros dominantes.


Assim, o grande objectivo deste projecto foi explorar a natureza das respostas ao nível da comunidade de carnívoros Sul Africanos a modelos alternativos de conservação e gestão, em função das complexas dinâmicas entre grupos. E tivemos a oportunidade de o fazer a vários níveis, levantando várias questões. De que forma a variação na estrutura das diversas comunidades de mesocarnívoros está relacionada com reintroduções do predador de topo, o leão, motivadas em grande parte pela indústria do ecoturismo? Como é que as comunidades de carnívoros que carecem de uma gestão activa respondem ao complexo mosaico de áreas protegidas, reservas privadas, fazendas de caça, ou comunidades tribais, que resulta de uma abordagem de conservação descentralizada? Será que subjacente a tais respostas estará também uma reorganização da forma como as espécies co-ocorrem e interagem? E dentro de uma só reserva, será que tais dinâmicas entre grupos desempenham também um papel importante na resposta de carnívoros a intervenções de gestão mais localizadas? Explorámos também questões de cariz mais teórico para entender estes padrões, revisitando interacções letais entre grupos de carnívoros sul Africanos em busca de uma visão mais ampla dos fundamentos mecanísticos da estruturação destas comunidades.


No cômputo geral, acredito que os resultados desta tese contribuem para o crescente apelo por uma visão mais holística da conservação e gestão da vida selvagem, não apenas na África Austral.



2 | Alegrias e sucessos durante o seu projecto

É difícil realçar a 'maior alegria' num percurso tão longo e intenso como foi o meu doutoramento. Mas posso destacar que foi um processo altamente recompensador de duas formas diferentes.

Desde muito novo percebi que queria, de alguma forma, poder contribuir para proteger a natureza e a vida selvagem; primeiro apenas por fascínio e mais tarde por uma consciência crescente dos riscos e ameaças. Sentir que consegui contribuir pelo menos um pouco neste sentido com a minha investigação, ao mesmo tempo que consegui satisfazer (na verdade, alimentar) a minha curiosidade em desvendar cada vez mais da fascinante complexidade da natureza, é algo que me deixa sinceramente feliz.


E a verdade é que o meu tempo em África foi, muito provavelmente, o melhor período da minha vida. Diria que a maior alegria foi todo o enquadramento em que vivi e trabalhei durante esses meses, constantemente rodeado e integrado na natureza e vida selvagem da savana Africana, entre dois locais incríveis - as reservas Mun-Ya-Wana e uMkhuze. O contacto permanente com a chamada megafauna (leões, leopardos, elefantes, rinocerontes...) é algo único e diferenciador das outras regiões do mundo onde já tive o privilégio de trabalhar ou visitar. Isto foi particularmente especial para mim por ser um sonho muito antigo.


3 | Que desafios encontrou, e como os superou?

O contexto local e ambicioso do projeto colocou muitos desafios mas também ofereceu muitas aprendizagens. É importante planificar mas estar sempre pronto para adaptar. Não é fácil planear um esforço de amostragem tão ambicioso (quase 400 estações de armadilhagem fotográfica entre os vários projectos e campanhas) nas suas várias vertentes: financiamento, equipamento, tempos, equipa, logística, autorizações, parceiros, e a lista contínua. Principalmente num contexto onde tudo pode mudar de um dia para o outro; porque o 4x4 avariou, começou uma tempestade, uma emergência com um elefante problemático passou a ser a prioridade máxima, ou um alerta de caça furtiva torna uma área interdita. Por outro lado, embora seja fácil para mim romantizar o trabalho que fiz, o facto é que foi muito duro. Centenas de quilómetros de 'bushwalking' na savana Africana, com um risco sempre inerente (criei uma relação ambivalente com rinocerontes negros) e pouco descanso. No entanto, aprendi que a melhor forma de motivação para lidar com estas dificuldades é saber arranjar tempo para parar, recuperar perspectiva, e aproveitar. Aprender a fazê-lo foi importante para manter presente que as dificuldades eram apenas parte, e claramente não a mais importante, da jornada incrível e altamente gratificante a que me propus.


Num sentido mais lato, são conhecidos os impactos da pressão e condições de um PhD na saúde mental e bem estar dos estudantes. Ao qual acresce a pressão de um meio académico muito competitivo. Eu não fui excepção. Acho que encontrei motivação para superar estas dificuldades na minha capacidade de resiliência e propósito com que assumi o desafio de um doutoramento. Mas acho importante que a comunidade científica/académica dê cada vez mais atenção e possa intervir nesta realidade para que o doutoramento possa ser um processo mais saudável.



4 | Que novas explorações espera realizar no futuro?

Com cada descoberta multiplicam-se as novas questões. No seguimento deste trabalho, gostava de perceber melhor o que está na base das diferenças que encontramos nas dinâmicas de espécies 'free-ranging', que como disse carecem de uma gestão activa, em reservas privadas relativamente a áreas formalmente protegidas a longo-prazo. Isto passa por entender melhor quais os processos de recuperação destes carnívoros em reservas recentemente implementadas, e quais as consequências ecológicas dessas diferenças ao nível do ecossistema. Estas perguntas estão directamente ligadas às linhas de investigação que mais me interessam actualmente. Nomeadamente a transição de abordagens ao nível da espécie ou entre grupos, para a avaliação mais holística e concreta das respostas de redes ecológicas multitróficas a alterações ambientais e medidas de gestão. Assim como a necessidade de identificar estados ecológicos de referência em áreas selvagens ainda existentes, que possam contextualizar tais padrões de variação e assim melhor guiar os esforços de conservação.


5 | O que está em vista num futuro próximo?

Neste momento estou a desenvolver um projecto de pós-doutoramento na Universidade da Colúmbia Britânica, Canadá, focado nos efeitos directos e indirectos de perturbação da paisagem associada ao sector energético nas redes espaciais de mamíferos boreais. Numa perspectiva de futuro, estou a trabalhar para desenvolver um programa de investigação sobre as linhas que referi anteriormente, de novo com foco em regiões tropicais e subtropicais, particularmente em África.


6 | Porquê concorrer ao Prémio de Doutoramento da SPECO?

A SPECO é uma sociedade de reconhecido mérito em Portugal que acompanho há bastante tempo. Este prémio em si é também uma iniciativa que já admirava pela valorização do trabalho de jovens doutores em Ecologia em Portugal. Colegas meus e investigadores que admiro bastante foram vencedores anteriores deste prémio. Como tal não pude deixar passar a oportunidade de concorrer. Também tenho de agradecer à minha supervisora, a Professora Margarida Santos-Reis, por ter impulsionado a minha candidatura.


7 | Quais os impactos deste prémio?

O primeiro impacto foi já a nível pessoal, na gratidão pelo reconhecimento a todo o trabalho que desenvolvi nos últimos anos. É um enorme alento para continuar a trabalhar em ecologia e em conservação da natureza.

Num sentido profissional, espero que este reconhecimento possa também ser uma oportunidade de dar a conhecer melhor o meu trabalho à comunidade de investigadores em Portugal e à sociedade mais geral. Por não ter tido foco no território Português, talvez o meu trabalho seja menos conhecido aqui. Fico contente que a SPECO dê reconhecimento a este e outros trabalhos desenvolvidos em diversas regiões do mundo, pois acredito firmemente que a conservação da natureza deve partir de uma consciencialização coletiva e global. Espero que este reconhecimento possa ser também um catalisador de futuras colaborações, já que vejo na crescente cultura de colaboração o único caminho viável para fazer face ao cenário difícil que enfrentamos.



8 | Qual a sua opinião sobre a SPECO como promotor dos jovens ecólogos?

Creio que ainda existe um grande 'gap' de percepção dentro da sociedade geral entre o que é ser um 'naturalista' e um cientista, um investigador. É importante dar a perceber o que é realmente o trabalho, embora bastante heterogéneo, de um investigador em ecologia. Acredito que tamanha dedicação a compreender o mundo natural na sua incrível complexidade, fazendo-o de uma forma (cientificamente) estruturada, é algo fascinante e que pode apelar a muitos jovens. Mas é importante dar a conhecer que caminho é este. Da pergunta à publicação. Por vezes existe pouca divulgação do processo e o foco está apenas em pequenas partes (como o trabalho de campo) ou no resultado final.  Acredito que a SPECO pode ter um papel fundamental nesse sentido, cativando assim novas gerações de ecólogos.


9 | Qual será a sua contribuição como membro da SPECO?

Penso que a visibilidade da SPECO decorre do seu trabalho para promover o conhecimento científico em Ecologia. Neste sentido penso que a maior contribuição que posso ter é manter o mesmo entusiasmo pela investigação em Ecologia e fomentar uma postura cada vez mais interactiva com a restante comunidade, através do meu trabalho e outras iniciativas.


10 |.Que conselhos deixa aos jovens e futuros ecólogos?

O caminho de um doutoramento tem muitas etapas e vertentes, e acho que aprendi coisas importantes em cada uma delas que poderia partilhar. Desde o delineamento de um projecto que vá ao encontro dos nossos interesses, à importância da equipa de orientação, passando pelas expectativas e objectivos académicos, o valor da colaboração e da interacção interpessoal, até à importância de priorizar o bem-estar individual como chave para o sucesso científico.

Mas a destacar um único conselho, seria para cada estudante manter, e não perder oportunidade de fomentar, a sua curiosidade. Acredito que esta característica é central ao papel de investigador e a maior fonte de entusiasmo, motivação e realização durante o processo. Por vezes é fácil substituir esta base por outros objetivos relacionados com a pressão do mundo académico. Mas saber manter esta perspectiva torna o trabalho extremamente gratificante. É importante aproveitar.


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